segunda-feira, 25 de outubro de 2010

As muitas rimas do Hip Hop

Com pelo menos três décadas de presença no cenário musical, o rap refletiu a evolução do pensamento social brasileiro e hoje rediscute seus caminhos

Por: Nina Fideles

Com as mudanças na TV Cultura, o programa semanal Manos e Minas, voltado para a cultura hip hop, foi cancelado no início de agosto, junto com outros da grade da programação. A medida provocou uma reação em massa de pessoas envolvidas com o movimento e apoiadores por meio de blogs e redes sociais, audiências e atos político-culturais. A direção da emissora acabou recuando, e o programa reestreia em outubro.
As mudanças no mercado e no mundo da música, e até mesmo a relação com a mídia, são temas recorrentes que sempre mexem no jeito de escrever, divulgar, produzir e pensar o rap nacional.

Desde o tempo da São Bento, o largo que virou palco do hip hop no centro da capital paulista, até a incursão em boates, casas de shows e programas de TV, muita coisa aconteceu.
Mas datar historicamente o início do rap no Brasil é tarefa imprecisa. Cada região tem seus protagonistas. Antes de se definir como hip hop brasileiro, as tendências do rap norte-americano influenciavam alguns artistas. Por exemplo, o apresentador de TV Carlos Miele gravou em 1979 o Melô do Tagarela, sampleando a música Rapper’s Delight, do Sugarhill Gang. E a música de Jair Rodrigues, Deixa isso prá lá, de 1964, já não tem uma pegada assim, meio rap?
Para o brasiliense GOG (de Genival Oliveira Gonçalves), mais importante que identificar uma data do nascimento do hip hop é ter a noção histórica de que essa cultura é uma evolução do pensamento social e da urbanidade da música. “Augusto dos Anjos, muito antes da gente, já escrevia hip hop. Solano e Raquel Trindade, Bob Marley… Como fala o Edi Rock, ‘a música negra é uma grande árvore com várias raízes’. Então, se nasce da mesma raiz e tá no mesmo pé, é parte do mesmo corpo, da mesma árvore.”

No início, as referências eram todas internacionais e falava-se de festas, mulheres, diversão. Algumas músicas já abordavam temas sociais, como o Rap da Abolição, do grupo Os Metralhas, de 1988. Mas foi somente mais tarde que o rap foi fortemente caracterizado como música de protesto.
Pepeu e MC Mike, que gravaram o rap Bastião, em 1986, Dj Ninja e MC Jack, General D., Black Juniors e outros grupos passaram a agregar mais pessoas nos famosos bailes organizados por equipes de som. Foi quando surgiu o rap Bastião, que NdeeNaldinho, hoje com 41 anos, se identificou com a cultura e, ao gravar o Melô da Lagartixa, inseriu-se no processo embrionário do rap nacional. Sua primeira música foi lançada na coletânea Som das Ruas, de 1988, mesmo ano em que saiu o álbum Hip Hop – Cultura de Rua, com músicas de Thaíde e Dj Hum, Código 13 e outros. “A gente fazia rap naquele tempo pra dançar. Foi depois que o rap pegou sua caminhada de revolucionar, fazer as cobranças, defender o povo…”, diz Naldinho, que na época ainda era NdeeRap. “Não tinha nenhuma outra música no país que tivesse essa postura, mas isso não quer dizer que a gente não possa falar de amor, de alegria.”

Edi Rock, do Racionais MC’s, lembra: “Só depois foi que o rap ficou mais sério, sócio-político. Foi uma fase de mudança muito importante. Autoafirmação, negritude, liberdade de expressão…”. Ele tinha apenas 19 anos em 1989, quando, junto com Mano Brown, KL Jay e Ice Blue, formava um dos grupos de maior referência do Brasil.

De lá pra cá


Racionais MC’s, Thaíde e Dj Hum, Ndee Naldinho, Os Metralhas, GOG e tantos outros grupos influenciaram uma nova geração na década de 1990, quando o rap nacional se fortaleceu. E ainda hoje novos nomes ganham destaque e dão sequência a essa história. Considerando o rap uma cultura relativamente jovem, o velho terá sido superado? Para GOG, 45 anos, a evolução de uma geração não está na mudança do tema, e sim na superação deles. E eles não foram superados.

“Acredito nessa leitura para que o novo seja uma evolução, uma caminhada, até ser uma ruptura. Quero me emocionar mais com uma nova geração. Eu me divirto muito, mas quero chorar também.”
Para Thaíde, escola é tudo o que ensina. “Velha ou nova cada escola marca um período , e cada um tem sua importância”, acredita. Mas admite: “Antigamente havia a necessidade de se informar, passar as ideias para frente por meio das nossas músicas, e isso ficou em segundo plano, infelizmente”.

Max B.O., apresentador do Manos e Minas, não vê somente uma velha e uma nova geração. “A gente deveria aproveitar melhor as diferenças de idade e ideias.” Max ganhou destaque com suas rimas no freestyle e começou a atuar profissionalmente em 1999. Não acha que suas letras são um protesto veemente como outras. “Mas também não faço ninguém se passar por trouxa. Acredito que tem muita coisa vazia circulando por aí.”

O desenvolvimento da tecnologia e sua apropriação é um dos fatores que influenciou na atualidade do rap. O acesso a ferramentas de produção e aos meios de divulgação como sites, blogs e redes sociais ampliaram o campo de atuação e ajudaram no gargalo da distribuição. Hoje é muito comum o lançamento das mixtapes, vendidas de mão em mão em shows e eventos por preços mais acessíveis. Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, 25 anos, vendeu mais de 10 mil cópias de sua mixtape de estreia no ano passado.

O mercado fonográfico também mudou. Em todos os estilos musicais, caem as vendas e multiplicam-se os downloads. Antigamente, os grupos apostavam alto. Os Racionais MC’s, com o Sobrevivendo no Inferno, de 1998, ultrapassaram um milhão de cópias vendidas, marca ainda insuperável no rap nacional. De Menos Crime, com São Mateus para a Vida, de 1999, vendeu 150 mil cópias. NdeeNaldinho, com O Apocalipse, de 1999, mais de 100 mil.

“Além de mudar as técnicas de produção, 50% dos militantes mudaram seus ideais e mudaram também os ativistas. Antes, o menino tinha 17 anos, hoje tem 35 e uma família pra sustentar. A dificuldade pra se manter financeiramente faz com que [o rap] seja pra poucos…”, analisa Cléber, do grupo Ao Cubo. O conteúdo das músicas não transformou apenas as letras das novas gerações. Para Edi Rock, hoje o rap está “mais livre” e ele gosta assim. Mas admite que muitos rappers, ao enxergar os Racionais como líderes e não músicos, pegaram somente a parte política e exageraram nisso. “Hoje temos caras novos, com formas e visões diferentes e isso é bom. É tempo de mudança! E acho que para melhor, senão teria sido tudo em vão.”

O rapper Crônica Mendes, do grupo A Família, faz uma avaliação semelhante. “É importante manter nosso público-alvo, e conquistar outro público também, pois dentro e fora das periferias tem muita gente que compactua com a mesma ideia”, defende.

Para MV Bill, que organiza com a Central Única das Favelas (Cufa) o Festival Rap Popular Brasileiro (RPB), a mutação é constante. “Tá sempre aparecendo coisa nova. Boas e ruins. O festival ajuda a revelar novos nomes e novas ideias, e a trazer um frescor à cena.” Seguindo a analogia da árvore como a música negra, eternizada na música de Edi Rock, GOG observa que hoje a árvore cresceu e continuará crescendo. “Alguns galhos, em alguns períodos, vão crescer mais e vão pensar que estão fazendo sombra para as outras pessoas. Mas todos os galhos são importantes.”

Particularidades no todo


Rúbia Fraga, 42 anos, se desafiou a rascunhar suas primeiras letras em 1992 e formou o grupo RPW. Para ela, fazer rap hoje é mais fácil e isso fez com que os grupos se preocupassem menos com a escrita, com a postura. “Rap é manifesto. Pode abordar, sim, várias coisas, mas não pode perder o tom da reivindicação e ultimamente muitos não têm essa preocupação.” Em sua opinião, alguns mais novos não conhecem e não se preocupam com o que foi feito antes deles e alguns mais velhos não aceitam certas coisas novas.

Nicole, 26 anos, é ex-integrante do grupo Inquérito. Ela segue com a produção de suas músicas e participa de outros grupos. Sobre a condição feminina, acredita que rap é rap, seja ele feito por mulher ou por homem. “Acho que rap feito por mulheres não perde em nada na qualidade musical nem nas ideias, e é importante que se mantenha assim.”

Em Fortaleza, Preto Zezé, 34 anos, do grupo Comunidade da Rima, aponta que não basta colocar qualquer coisa com o rap e dizer que é nordestino. “É preciso incorporar musicalidade, adaptar à técnica da rima, se não fica muito estereotipado, só para demarcar. Muito sotaque, estética, mas pouca essência e prática do que o conteúdo quer passar”, explica.

O também cearense Francisco Igor Almeida dos Santos, o Rapadura, 26 anos, diz que seria um avanço se cada estado tivesse o rap com sua raiz e sotaque: “Consigo alcançar outros meios artísticos e outros públicos por fazer ‘rap com ritmos nordestinos’. Só assim aprenderíamos a nos respeitar e nos entender melhor”.

O mercado do chamado rap gospel também tem público. Diversos grupos transitam no cenário livremente, sem rótulos, como afirma Cléber: “O fato de um dia alguém ter colocado o título gospel em nosso grupo fez com que algumas portas se fechassem, mas nunca gostamos de usar esse rótulo. Quando levamos uma música numa rádio secular, dizem que nosso som é gospel; quando levamos numa rádio gospel dizem que é muito rap. Vai entender”, ironiza.

Reflexão e ação


Nos últimos anos, o público das periferias brasileiras, em um primeiro momento fiel ao rap nacional, tem curtido muito o funk. Essa perda de espaço tem gerado reflexões sobre a atuação do estilo. “Quando as portas começavam a se abrir, o rap falou ‘lá eu não vou, isso a gente não faz, lá a gente não pode’. Se fechou em muitos lugares, mas ainda assim conquistou muita gente e cumpriu um papel”, avalia Naldinho.

Marco Antônio, o Markão II, 38 anos, é membro do grupo DMN, e segundo ele o hip hop não construiu uma estrutura política, mesmo que alguns tenham atingido para si um nível de organização pessoal. “Eu não consigo bater no peito e dizer que a cultura está muito bem, porque mais uma geração envelhece e não conseguiu ter uma estrutura de rádios, lojas, casas de shows, revistas. Isso é sinal que a gente falhou em algum momento, e não acho que a nova geração está preocupada em fazer isso. O rap vai ser mais um gênero musical como outro qualquer, sem diferença nenhuma”, declara.
Durante todos estes anos, os Racionais MC’s e outros negaram inúmeros convites da grande mídia. Para Edi Rock, ver o grupo na TV vai depender muito do formato: “Eu não consigo ver o grupo na televisão, a não ser em programas que tenham a ver com a nossa cara”, afirma.

Mas muitos rappers conheceram de perto essa mídia como Rappin’ Hood, Thaíde, Xis, KL Jay, RZO. Hoje, por exemplo, o carioca MV Bill tem papel em Malhação, e conta que sempre respeitou os grupos que foram avessos à mídia, mas optou por outro caminho. “Apesar de ter estagnado um pouco, o hip hop me fez gostar de comunicação, e o meu parceiro Celso Athayde me ensinou a utilizar a mídia a nosso favor e, quando possível, intervir nesta realidade”.

Thaíde também “não teve medo de fazer”, como ele diz, e após deixar a apresentação do Manos e Minas se integrou à equipe do programa A Liga, da Bandeirantes. “A gente ensinou muita coisa, mas não ensinamos ninguém a lidar com a TV, com os rádios, a se profissionalizar, a ser artista. E isso também é importante”, opina.

Por ter um discurso político e reivindicatório, o rap quase que naturalmente se afastou da grande mídia e se aproximou da vida política, via partidos e movimentos sociais. Vários envolvidos com a cultura já se candidataram ou assessoram e apoiam publicamente candidatos. Erlei Melo, 36 anos, rapper do grupo Face da Morte, conhecido como Aliado G, disputou vaga de deputado estadual pelo PC do B, em São Paulo. “Somos muitos e muito fortes. Acredito que entre nós podem existir médicos, engenheiros, advogados e lideranças políticas. O que temos de diferente da elite são as oportunidades”, diz.

Aliado G criou o Face da Morte em 1995, em Hortolândia, no interior paulista, e como selo lançou discos do GOG, Realidade Cruel e Clã Nordestino. “Independentemente da vontade de A ou B, a arte transforma ou conserva a sociedade. A nossa transforma”, sintetiza. GOG concorda. “Lá em nossa base, na periferia, na origem do hip hop, é onde temos de estar com o amálgama preparado. Nós somos música para transformar a sociedade, a comunidade. Trabalhando contra nós mesmos, sempre sairemos derrotados.”

FONTE: RAPNACIONAL.COM.BR

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